O Carma Familiar, Chave do Destino Humano?

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Por Olavo de Carvalho

O psiquiatra e humanista húngaro L. Szondi passou a vida tentando saber o que impedia a liberdade interior do Homem. Ele descobriu que as figuras dos antepassados permanecem vivas no inconsciente do indivíduo, forçando-o a repetir seus comportamentos e impedindo-o de escolher sua própria vida. Talvez o símbolo mais popular da injustiça seja o lobo da fábula, que pune o carneiro pelos crimes hipotéticos de seus pais, avós ou bisavós. No entanto, cada um de nós carrega no coração um lobo que não descansa enquanto não pagamos com fracassos, doenças e humilhações, até o último erro e a última ignomínia real ou imaginária de nossos antepassados. Isso pode parecer uma simples metáfora, mas é uma tese rigorosamente científica. É a teoria básica da Análise do Destino (Schicksalsanalyse), escola psicológica criada pelo psiquiatra e humanista húngaro L. Szondi. Embora pouco conhecida no Brasil, a Análise do Destino é um dos mais originais desenvolvimentos da teoria psicanalítica depois de Freud, Jung e Adler.

 

Szondi, que foi professor da Escola Superior de Psicopedagogia de Budapeste até que a invasão nazista o obrigasse a fugir para a Suíça (onde continua ativo aos 84 anos), passou a vida tentando responder a uma das questões mais dramáticas já formuladas a respeito da condição humana: por que as pessoas quase nunca conseguem agir da maneira que conscientemente desejam, e acabam fazendo outras coisas, que não tencionavam e que até procuravam evitar? Existe alguma força oculta mais poderosa do que a vontade? Existe algo assim como um destino? Será que o Homem nunca pode ser livre? Em resposta a essas perguntas, Szondi criou uma grandiosa concepção psicológica e antropológica onde uma das chaves mais importantes é justamente a pesada influência dos antepassados sobre o destino, algo assim como um carma familiar que acompanha os indivíduos através da existência, levando-a, freqüentemente, a um desenlace trágico. Analisando milhares de árvores genealógicas de cidadãos de Budapeste (onde era também diretor do Instituto de Genealogia), Szondi observou que determinados distúrbios psíquicos, sociais e somáticos pareciam repetir-se de geração em geração, como se uma compulsão misteriosa arrastasse os indivíduos à repetição eterna dos aspectos mais negros na vida de seus antepassados.

O que tem a ver a histeria com o jornalismo?

Além disso, as famílias pareciam distribuir-se em grupos claramente delimitados, onde a recorrência de certas doenças coincidia, por incrível que isto fosse, com a escolha das mesmas profissões. Para complicar ainda mais as coisas, as pessoas pareciam escolher seus cônjuges, e mesmo seus amigos, de preferência entre as famílias do mesmo tipo. Isso levantava as mais estranhas hipóteses. Que tipo de parentesco poderia haver entre coisas tão aparentemente disparatadas como o eczema, a epilepsia e a profissão eclesiástica? Ou entre a depressão e a profissão de antiquário? Ou, ainda, entre a histeria e profissão de ator ou jornalista? Szondi não recuou ante o absurdo aparente. Por mais diferente que fossem entre si, era evidentemente que as peças não se juntavam e separavam no tabuleiro unicamente segundo as leis do acaso. Tinha de haver uma regra nesse jogo maluco. Na tentativa de descobri-la, Szondi formulou as duas hipóteses básicas da Análise do Destino:

Primeira. Se as neuroses, conforme Freud tinha mostrado, eram manifestações “desviadas” dos instintos humanos, e se havia um parentesco entre essas doenças, as profissões e as escolhas de parceiros para o casamento e a amizade, era forçoso reconhecer que, por trás de todas essas manifestações, era a mesma necessidade instintiva básica que se expressava.

Segunda. Se cada tipo de necessidade instintiva se repetia de geração em geração, então era forçoso reconhecer que os instintos não pertencem unicamente à esfera individual (ou humana em geral), mas que têm também um caráter familiar. Ou seja, que ao lado do inconsciente pessoal descoberto por Freud, do inconsciente coletivo estudado por Jung e do inconsciente social (núcleo instintivo de uma dada comunidade cultural), descrito por Adler, devia existir ainda um inconsciente familiar.

O indivíduo carrega uma herança deixada por todos os seus antepassados. As figuras dos ancestrais, cada um com seu comportamento e caráter determinado, permanecem vivas e ativas no inconsciente familiar, funcionando quase que como moldes ou padrões de comportamento da pessoa. No inconsciente familiar o indivíduo carrega, em estado latente, todas as suas possibilidades de existência, modeladas por seus antepassados. As figuras dos ancestrais permanecem vivas e ativas, “quase como moldes e figuras, ou padrões de comportamento”, diz Szondi. Carregados de energia instintiva, esses padrões esforçam-se constantemente por manifestar-se. Szondi denomina isso pretensão dos ancestrais: os vários destinos possíveis – e freqüentemente contraditórios entre si – modelados pelos antepassados forçam o indivíduo a imitá-los, a repeti-los, e tudo quanto o indivíduo pode fazer é escolher ora um, ora outro entre os vários modelos herdados.

Aí surgia, porém, a pergunta: por que alguns indivíduos expressavam a pretensão dos ancestrais ficando doentes, enquanto outros limitavam-se a escolher determinada profissão ou a casar com determinado tipo de parceiro? Foi assim que Szondi chegou à terceira hipótese: a da luta perpétua entre compulsão e liberdade no homem.

Um Caminho Que Vai da Compulsão à Liberdade

Se o Homem, diz Szondi, recebe pronta uma determinada estrutura instintiva básica, com todas as suas exigências e conflitos, nem por isso está fixada de uma vez para sempre a sua maneira, a sua fórmula pessoal de expressá-la. Esta será determinada, em parte, pelo ambiente social e cultural (também herdado dos antepassados) e em parte pelas escolhas conscientes do próprio indivíduo. Conforme o maior predomínio de uma ou de outra dessas ordens de fatores, haverá nos termos de Szondi, um destino compulsivo ou um destino de livre escolha. O caminho da compulsão à liberdade é o destino da vida humana. Numa das pontas do caminho, está a doença, a neurose ou psicose, que é a vitória absoluta das pretensões inconscientes dos antepassados sobre a consciência. Na outra ponta, a vitória da consciência.

O ego, diz Szondi, é a instância que, amparada pela mente consciente, governa as nossas escolhas. Ele opta, a cada instante, entre a repetição mecânica do destino compulsivo e a expressão deliberada, consciente, fundada em valores universais, e humanizada enfim. Daí provém toda a distância que separa “parentes” genéticos como o criminoso epilético e o sacerdote, o esquizofrênico delirante e o físico-matemático, o doente histérico e o orador político, o jornalista ou o ator. Iguais em sua estrutura instintiva básica, o homem doente e o homem são diferem unicamente na reação do seu ego ante a escolha básica: o mundo “escuro” e maligno das pulsões inconscientes, o mundo “luminoso” dos valores universais.

No entanto, o ego não cria a nossa liberdade negando as tendências herdadas, mas compreendendo-as, assimilando-as, orientando-as e expressando-as de maneira socializada (adaptada aos padrões da comunidade), ou, melhor ainda, numa instância superior, humanizada (identificada a valores universais). Por isso mesmo, a escolha livre do ego é o mecanismo básico da psicoterapia concebida por Szondi. O psicoterapeuta szondiano (no Brasil não chegam a trinta), pocura conscientizar o indivíduo a respeito dos seus padrões familiares de comportamento, mostrando-lhe a possibilidade de uma nova vida livremente escolhida, e em seguida estuda com o paciente uma maneira mais adequada de expressar e aliviar as pretensões dos ancestrais, por exemplo mudando de profissão ou de ambiente social. Depurando a canga instintiva e orientando-a no sentido da realização humanizada, a terapia szondiana é um trabalho verdadeiramente alquímico de transmutação interior, no qual a mesma força que desequilibrou o paciente é usada para curá-lo.

Mas antes de saber quais as peças que o terapeuta e o paciente remexem no imenso tabuleiro dos instintos e de suas formas de expressão, é preciso saber como surgiram essas hipóteses na mente de Szondi.

Era Como a Sogra: Queria Matar os Filhos.

A exposição lógica que acabo de fazer pouco tem a ver com a verdadeira ordem das descobertas na Análise do Destino. Embora sempre amparada a posteriori em massas enormes de estatísticas e observações clínicas, as idéias de Szondi não nasceram da coleção de fatos isolados, mas de uma série de “impactos cognitivos” que levaram o mestre húngaro a uma sucessão de intuições fulgurantes sobre o fenômeno humano. O mais conhecido desses impactos foi um acontecimento corriqueiro, narrado pelo ex-aluno de Szondi, dr. Juan Muller, psicólogo argentino radicado no Brasil, em seu livro Alquimia Moderna (São Paulo, Cupolo, s/d). Certa vez apareceu no consultório de Szondi um casal: a mulher sofria de crises depressivas motivadas pelo temor injustificado de matar os filhos, a quem amava. Szondi observou casualmente que já havia tido a oportunidade de tratar de uma senhora com sintomas semelhantes, numa cidadezinha distante 200 quilômetros da capital. Espantado, o marido da paciente pulou da cadeira:

– Mas essa paciente que o senhor descreve é minha mãe!

Daí surgiu a hipótese do libidotropismo (escolha de parceiro amoroso segundo o modelo ancestral), que foi uma das pedras angulares da Análise do Destino. Outro impacto ocorreu quando Szondi estava para se casar e percebeu que sua noiva era quase uma cópia da mulher de um de seus irmãos. Szondi era de origem modesta, filho de um sapateiro. Seu irmão, jovem talentoso, havia atirado fora a oportunidade de uma brilhante carreira profissional ao casar-se com uma mulher que parecia empenhada em atormentar-lhe a existência. Ao notar que estava prestes a repetir esse destino, Szondi desistiu de casar e preferiu continuar os estudos. Mais tarde fez uma casamento feliz com outra mulher, mas esse fato lhe deu uma dimensão do conflito entre o desejo de liberdade e auto-realização e a tendência compulsiva de repetição. Deu-lhe ainda a visão do papel decisivo da escolha na determinação do destino.

O terceiro impacto foi a guerra. Judeu de origem, Szondi teve de fugir às pressas com a família, enquanto vários de seus amigos e colaboradores eram presos, mortos ou deportados. Anos depois, ele teve a oportunidade de estudar – pessoalmente ou através de uma vasta rede de assistentes – a personalidade de criminosos de guerra, como Adolf Eichmann e Marton Zöldi (este, um coronel da polícia que durante a ocupação mandara matar pessoalmente milhares de sérvios e judeus em Budapeste).

Caim Simboliza o Desejo de Poder, de Ter e de Ser.

Essa experiência gerou nele um profundo interesse pelo problema do mal em todas as suas formas. Daí nasceu a concepção absolutamente genial do Complexo de Caim, que é a chave de toda a filosofia ética szondiana.

“Caim rege o mundo”, escreve ele. “A quem duvida, aconselhamos o estudo da história universal. O historiador não oculta que a essência da história é a luta. Não oculta que a história não é a realização de um contínuo processo desde baixo até o alto, do mau ao bom, da escravidão à liberdade. Sua opinião é que a história é, antes, uma linha tortuosa de crueldades. A história registra quando um povo crucifica ou queima profetas e santos, tribunos e missionários. Ao cabo de milhares e milhares de anos, não diminui a atividade assassina de Caim. O fratricídio é infinito.”

Observando que o ódio ao pai acompanhado de paixão pela mãe é característico apenas de certas culturas, enquanto o ódio entre semelhantes, o desejo de matar os irmãos, é universal, Szondi afirma que o Complexo de Caim, tal como está descrito no mito bíblico, é um fenômeno mais profundo e abrangente do que o Complexo de Édipo descrito por Freud segundo a mitologia grega. Mas Caim não é apenas o impulso assassino, é também o desejo de auto-afirmação, o desejo de poder, de ter e de ser. Por isso, pode transformar-se numa foca civilizadora, transmutando-se em Complexo de Moisés: o Homem violento e passional a serviço da justiça divina.

Na tradição judaica, concede-se muita importância ao fato de que na narrativa bíblica foram os descendentes de Caim (e não os de Abel) os fundadores de cidades, os civilizadores do mundo antigo, como se o arrependimento conduzisse esses homens, hereditariamente violentos, a canalizar sua imensa energia para finalidades construtivas. Por isso o “sinal de Caim”, a marca na testa que segundo a tradição lendária assinala a descendência do irmão assassino, tanto pode ser interpretada como indício de que se trata de um Homem violento, quanto como garantia de que esse Homem decidiu interromper a seqüência de iniqüidades de seus antepassados e dedicar-se doravante ao bem, à cultura, às leis, à humanização.

Na psicologia szondiana o tipo cainita pode ser tanto o criminoso epilético quanto o reformador moral tipo Moisés e Savonarola. No romance de Herman Hesse, Demian, a marca de Caim aparece como um sinal dos seres superiores, onde algo de diabólico coexiste estranhamente com um traço de humanitarismo e de criatividade divina. Os instintos não pertencem apenas ao indivíduo, mas tem um caráter familiar. Ao lado do inconsciente pessoal descoberto por Freud, do inconsciente coletivo identificado por Jung e do inconsciente social descrito por Adler, Szondi estabeleceu a existência do que chamou de inconsciente familiar. O mecanismo da transformação de Caim em Moisés é a própria essência da terapia szondiana. Mas todos os instintos humanos, e não somente a paixão assassina do cainista, afirma Szondi, podem seguir essa trajetória, pois todos podem ser sempre vivenciados de duas maneiras opostas.

Com Pares de Opostos, Ele Monta o Jogo do Destino.

Esse confronto de significados opostos atribuídos ao mesmo instinto é a base para a descrição que Szondi faz dos instintos humano – e, portanto, dos tipos de caráter e destino. Montando pares de opostos, ele constrói assim o tabuleiro onde se distribuem as peças para o jogo do destino.

Szondi reconhece a existência de quatro “vetores” – instintos básicos:
● a pulsão sexual;
● a pulsão paroxística (tendência a acumular e descarregar energias);
● a pulsão do ego (pulsão de escolher o próprio destino) e
● a pulsão de contato (instinto social).

Cada um desses vetores pode ser vivido de duas maneiras contraditórias, traduzindo-se, portanto, em oito necessidades pulsionais:

A pulsão sexual, por exemplo, contém em si as necessidades opostas de feminilidade e masculinidade, presentes em todo ser humano.

A pulsão paroxística contém as necessidades pulsionais de sentimento ético (necessidade de estar moralmente “certo”) e a necessidade de exibir-se, de fazer-se valor socialmente. A pulsão do ego comporta a egossístole (retração do ego, possessividade, realismo) e egodiástole (expansão do ego, necessidade de crescer, de ser mais em contraposição ao ter da egossístole). A pulsão de contato, por sua vez, comporta as necessidades opostas de mudar, de transformar-se, de adquirir novos valores e a necessidade de apoio, de apegar-se a algo ou alguém.

Cada necessidade pulsional, por sua vez, pode ser afirmada ou negada pelo indivíduo, gerando assim 16 tipos diferentes de tendências impulsivas que se alternam, aproximam. Afastam, combinam e combatem na sua alma. Isto resulta na sua configuração instintiva pessoal, que se organiza em cada momento da sua vida em torno de determinadas linhas básicas. (No quadro, a lista completa das tendências). Cada tendência instintiva, por seu lado, pode ser vivida de inúmeras maneiras, que vão desde a doença até a profissão. A tendência para a sensibilidade individual (amor pessoal), por exemplo, pode ser vivida sob o aspecto de doença (homossexualismo masculino) ou sob o aspecto normal de apego a uma determinada pessoa, ou ainda ser socializada através da profissão (trabalhos que exijam manifestação direta do carinho e atenção).

“Cains de Tinteiro” – Uma Forma de Socializar o Ódio.

A tendência cainita para o mal (vingança, ódio) pode ser vivenciada sob o aspecto criminoso ou doentio, ou canalizada para uma profissão (os “Cains de tinteiro”, na expressão de Szondi: comentaristas de imprensa hipercríticos e mordazes, são um bom exemplo).

O número de combinações possíveis é imenso, e Szondi completa o quadro com análises das tendências instintivas inerentes a cada profissão. O repertório completo dos tipos profissionais e humanos e suas intermutações é um instrumento de análise social dos mais impressionantes já concebidos. À luz da teoria szondiana, a sociedade como um conjunto aparece como um gigantesco aparado destinado a reorientar, ordenar e dirigir os instintos, e dotada de uma inventividade quase infinita para a arte combinatória que transforma tendências sociais aceitáveis, e vice-versa: um imenso Caim-Moisés e combinando e recombinando necessidades e possibilidades, instintos e valores em busca da harmonia e da liberdade, e tropeçando a cada passo em novas formas de velhos obstáculos: a violência e o mal. É um quadro grandioso e sinfônico dos esforços do homem pela sua humanização. Aí entra aquela que é talvez a mais impressionante das intuições de Szondi, que o levou a criar um teste psicológico (o Diagnóstico Experimental dos Instintos ou Teste de Szondi), que é ao mesmo tempo aplicação e resumo da sua doutrina.

Essa intuição nasceu numa espécie de devaneio ou sonho, em que Szondi imaginou que o conflito eterno das combinações instintivas no coração do homem sob a forma de personagens, rostos humanos que entravam e saíam de cena conforme esta ou aquela tendência instintiva vencesse ou fosse vencida. Szondi imaginou, então, que os instintos básicos se expressavam no rosto das pessoas (antecipando assim as idéias atuais sobre o “inconsciente visível”), e que aceitar ou rejeitar determinada pessoa equivalia a aceitar ou rejeitar determinada tendência instintiva em si mesmo. A partir daí, Szondi elaborou a imagem visual da sua doutrina. Como um artista que não se contenta com as idéias abstratas, mas quer realizar a proeza de dar-lhes forma concreta e sensível, Szondi passou a procurar aqueles rostos que havia vislumbrado, e que seriam a tradução exata da sua concepção. Para isso, examinou e testou nada menos de 80 mil fotografias de rostos humanos, até achar aqueles nos quais instintivamente toda e qualquer pessoa pudesse reconhecer, conscientemente ou não, a presença de determinada tendência.

Um Teste Que Resume as Possibilidades do Indivíduo

A criação do Teste das Fotografias foi um ato de ousadia intelectual, pois somente os maiores gênios da humanidade conseguem vislumbrar um significado universal em suas visões interiores e depois comprovar com testes científicos que esse significado é verdadeiro. O Teste de Szondi não só fornece um quadro adequado das tendências que o paciente aceita ou rejeita em si mesmo como também – o que é mais espantoso – quando o terapeuta pede que o paciente invente uma biografia para uma das figuras, a história inventada quase sempre coincide com o caráter e a doença da pessoa que está na fotografia. Szondi demonstrou, assim, que não apenas sua intuição a respeito da equivalência entre expressão e tendência era essencialmente verdadeira, mas que essa intuição era virtualmente a mesma em todas as pessoas, conscientizada ou não.

O teste é, em si mesmo, um resumo das possibilidades do destino individual. Como tem 48 fotografias, um psicólogo americano o chamou “As 48 faces do destino”. Qual o valor último da obra de Szondi? Depois de um sucesso inicial, o prestígio da Análise do Destino nos anos 50-60 porque muitos psicólogos julgavam sem fundamento a sua insistência na herança genética. Mais tarde, a psicóloga norte-americana Susan Deri mostrou que, independentemente da explicação genética, o teste de Szondi – e portanto sua teoria – funcionava, na prática, para obter diagnósticos muito precisos e profundos. Hoje, muitos discípulos de Szondi, como o belga Claude van Reeth, preferem falar de um discurso familiar em vez de transmissão genética, julgando que o carma familiar se transmite através de puras significações inconscientes e não por via genética. Essa questão continua em aberto, mas não invalida o fato de que, com Szondi, a realidade inegável do carma familiar ingressou na consciência moderna.

O culto dos antepassados parece hoje um costume bárbaro de épocas remotas. Entretanto, ele cumpria um papel psicológico indispensável: libertava o indivíduo dos fantasmas do passado e o deixava livre para escolher sua existência. Cultuando seus pais e avós, o antigo apaziguava suas exigências, vivas no seu inconsciente pessoal, e assegurava o predomínio da consciência clara, que é um pressuposto da sobrevivência humana.

Numa era de racionalismo, esse trabalho já não pode ser feito mediante práticas rituais que as pessoas julgariam entre bárbaras e cômicas. Tem de ser feito por meios científicos. A psicoterapia szondiana cumpre hoje esse papel, e ela o tem feito com brilhantes resultados. Ela recupera um antigo conhecimento e o transmuta em linguagem científica, reconstituindo e reinstaurando um rito de purificação dos instintos para a libertação do Homem. E, nesse rito, Szondi é o sumo sacerdote.

Fonte: Revista Planeta, 67, abril de 1978

Obs.: a expressão “Carma Familiar” foi cunhada pelo professor Olavo de Cavalho, na aula de 27 de junho de 2009 do Seminário de Filosofia Online. Ele declarou que este artigo foi vertido para o francês e apresentado ao Dr. Lipot Szondi que concordou integralmente com seu conteúdo.

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