Hoje estou como aqueles pais de família vendendo balinhas nos semáforos. Com sua licença, doutor(a), deixo meu pacotinho no seu retrovisor com a mensagem de sempre: “Eu podia estar falando mais do mesmo das rebeliões em presídios, do legado do Obama e da posse do Trump, da morte estranha do ministro do STF Teori Zavascki, mas não, estou aqui a tentar trabalhar com o que é perene – logo, mais urgente, não? –, por isso peço apenas um minutinho da tua atenção. Grato, Deus te recompense”.
Lembra da coluna da semana passada, quando tratei de cultura pessoal? Esclareci que ela não se confunde com tudo o que vai na memória, mas se constrói do pequeno ou grande resto da totalidade do que se testemunhou, viveu, leu, assistiu ou ouviu nessa vida e que foi amado e guardado no coração. Isso significa que quem quiser aprimorar sua cultura pessoal terá de agir não como quem treina para os Jogos Olímpicos, mas como um amador.
Não é de espantar que esse processo de aprimoramento da cultura pessoal deixou de acontecer “naturalmente”
Por exemplo, uma coisa é saber que Beethoven é melhor que Los Hermanos. Outra, muito diferente, é preferir Beethoven a Los Hermanos. Posso saber que um é melhor que outro porque alguém confiável ou uma tradição a que dou autoridade diz que é melhor, mas só posso preferir um ao outro porque realmente amo um mais do que outro. Um senso pessoal de proporção é assim que se adquire, aliás – o resto é fingimento e autoengano.
Se isso parece exagero, romantismo ou algo do gênero, não custa lembrar a definição de filosofia. Não é ela amor à Sabedoria? Ora, então Renato Russo tinha razão: sem amor, não adianta ler tudo e mais um pouco, carregar uma biblioteca de Alexandria na memória, ser um obeso cultural, falar a língua dos anjos. Não sabendo amar, resta tentar possuir, engolindo vorazmente sabedorias como se fossem pingos d’ouro, tomando por contemplação o que não é mais do que coceirinha do pensamento posterior, vadio e irrequieto, a padecer de má digestão.
Os bem-sucedidos nessa mentira interior, Ícaros que não despencam, costumam se encastelar em uma falsa superioridade estética e intelectual, muitas vezes feita de indiferença estoica e incapacidade de compaixão pelo que parece estar abaixo, não raro fugindo de toda convivência humana e intimidade real, fazendo do desprezo método crítico, quando não de autoeducação. Infelizmente, a maioria dos defensores atuais da “alta cultura” – que deveriam dar o exemplo e apontar o caminho – são pessoas assim e mais atrapalham que ajudam. Afinal, quem sente a necessidade de ser melhor, de aprimorar sua cultura pessoal, ao entrar em contato com esses tipos de homens “cultos” só pode sair com uma impressão péssima: se é para ficar como eles, melhor não.
Some-se a isso a circunstância espiritual em que vivemos há gerações, na qual o Belo virou Gosto; a Verdade, Relativa; o Bem, Tolerância; a religião se escolhe; a cultura não se cultiva e a educação não educa; e não é de espantar que esse processo de aprimoramento da cultura pessoal deixou de acontecer “naturalmente”, tornando-se necessário (re)aprender o que antes não precisava ser ensinado, resultando numa legião de desorientados na vida, a maioria analfabetos funcionais, sem saber dizer mais sobre si e a vida do que o mineirinho da piada: oncotô?, doncovim?, proncovô?
Tem solução? Sempre tem. Mas não cabe no pacotinho de hoje. Muito obrigado pela atenção aqui deixada, doutor(a), tenha um bom dia e boa semana.
Fonte: Gazeta do Povo
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